Saturday, November 14, 2009

Meu Querido Gratuito


O sentimento de posse de um jornal diário gratuito é algo digno de um estudo sociológico ou psicossociológico.
Na rotina quotidiana e metropolitana de leitura desse tipo de publicações é frequente assistir à repetição de um determinado comportamento: a forma gananciosa com que se segura e tenta resguardar dos olhares alheios um objecto que, apesar do carácter gratuito, parece, naqueles instantes, revestir-se de ouro e diamante. Ainda que, logo a seguir, sejam deixados ao abandono e votados ao desprezo do descartável, nas gretas entre os bancos.
Já constatei, a título pessoal e em diversas ocasiões, que quando o fiel depositário provisório do exemplar do gratuito X se apercebe que estou a olhar de esguelha para as gordas vira imediamente a página, amarrotando as folhas, na pressa de dispersar a minha atenção, e contorcendo a expressão facial com um ar indignado, como se fossem dizer-me:«vai comprar o teu!».
Já cheguei ao cúmulo de assistir a casos em que a ofensa causada pela minha espreitadela parece ser tal que preferem fechá-lo ou fazer a leitura ao contrário, de trás para a frente, e de forma apressada, sem se fixarem numa página ou num artigo em concreto, para não dar tempo suficiente para a olhadela intrusa. A missão é clara: «não deixar o do lado ler nada. Este gratuito é meu».
As páginas de publicidade agradecem, acabando por ser uma boa barreira à 'bisbilhotice' alheia.
Certamente, um destes dias, encontrarei alguém que vire o jornal de pernas para o ar, só para ver até onde vai o contorcionismo do meu pescoço e dissuadir-me de vez da espreitadela.
Até lá faço votos que entre essas pessoas susbsistam algumas que conservem, ainda, o antigo costume nacional de, finda a leitura, deixar o jornal no banco com o propósito consciente e generoso de que quem vier a seguir possa ler também. Afinal agora até os há gratuitos.